terça-feira, agosto 28, 2007

Uma Alegria para Sempre
(Mario Quintana)

As coisas que não conseguem ser olvidadas
continuam acontecendo.
Sentimo-las como da primeira vez,
sentimo-las fora do tempo,
nesse mundo do sempre
onde as datas não datam.
Só no mundo do nunca existem lápides...
Que importa se - depois de tudo - tenha "ela" partido
ou que quer que te haja feito, em suma?
Tiveste uma parte da sua vida que foi só tua e, esta,
ela jamais a poderá passar de ti para ninguém.
Há bens inalienáveis, há certos momentos que,
ao contrário do que pensas,
fazem parte de tua vida presente
e não do teu passado.
E abrem-se no teu sorriso mesmo quando,
deslembrado deles,
estiveres sorrindo a outras coisas.
Ah, nem queiras saber o quanto deves à ingrata
criatura...
A thing of beauty is a joy for ever

-disse, há cento e muitos anos,
um poeta inglês que não conseguiu morrer.

segunda-feira, maio 21, 2007

Fresta
(Fernando Pessoa)


Em meus momentos escuros
Em que em mim não há ninguém,
E tudo é névoas e muros
Quanto a vida dá ou tem,

Se, um instante, erguendo a fronte
De onde em mim sou aterrado,
Vejo o longínquo horizonte
Cheio de sol posto ou nado

Revivo, existo, conheço,
E, ainda que seja ilusão
O exterior em que me esqueço,
Nada mais quero nem peço.
Entrego-lhe o coração.

segunda-feira, abril 30, 2007

Sobre a loucura
(Lima Barreto)
"Quem uma vez esteve diante deste enigma indecifrável da nossa própria natureza, fica amedrontado, sentindo que o gérmen daquilo está depositado em nós e que por qualquer cousa ele nos invade, nos toma, nos esmaga e nos sepulta numa desesperadora compreensão inversa e absurda de nós mesmos, dos outros e do mundo. Cada louco traz em si o seu mundo, e para ele não há mais semelhantes, o que foi antes da loucura é outro muito outro do que ele vem a ser após. E essa mudança não começa, não se sente quando começa, e quase nunca acaba..."

sexta-feira, abril 27, 2007

Do flerte ao casamento
(Luis Fernando Veríssimo)
FLERTE - Quando ela é toda sorriso e você, cheio de nove-horas e gentilezas, fica naquela conversa mole por mais de dez minutos, ri de qualquer bobagem que ela fala, e quando ela anda, você crava os olhos naquele belo traseiro, imaginando... Isto é um flerte. Este relacionamento só tem vantagens. Você a chama para sair, é super legal, a noite toda é só risadas e bons momentos.
Depois do primeiro amasso, isso já vira um...
CASO - Grande estágio! Começa a rolar um sexozinho, mas nada muito adiantado, afinal "Eu não sou qualquer uma...". Daí já pinta aquele negócio de ligar um pro outro a cada quinze minutos, sair mais constantemente, rola um "Temos um relacionamento". Ainda? Bom, mas já começa a ter uma cobrança. Afinal, "Eu não sou como as outras garotas que você já teve."
Se durar mais de um mês, pronto, já é um...
NAMORO - O que significa um namoro? Assinaste um contrato de exclusividade, meu caro. Isto significa que você não pode mais comer ninguém além dela, nem mesmo dar uns beijinhos. Você tem que ligar todo dia para ela, senão... o quê? Sair sábado com os amigos? Esqueça! "Ah! Você quer é ir para a putaria com aqueles seus amigos galinhas? Você pensa que eu sou idiota?". Tem que ir no aniversário daquele babaca do primo dela, não pode mais ter amigas... "Aquela galinha tá é dando em cima de você! Pensa que eu não vejo"... "Onde você foi ontem, que chegou tarde? Liguei para a sua casa e você não estava". Nessa fase, você, já apaixonado, aceita tudo que ela te fala e ainda acha certo! Você começa a viver em função dela. Você só faz as coisas que você quer se ela tiver outra coisa para fazer, de outro modo, tudo gira em torno dela: horários, passeios, amigos, turmas... é foda!
Aí, aquela deusa maravilhosa, mulher da sua vida, linda e desejada, a mais perfeita descrição de um ser humano, tira da bolsa um cabresto, põe em você, pega o chicote, coloca as esporas e monta em você. Daí, meu filho, estás ferrado. Se você deixar na primeira vez, fodeu! Nunca mais consegue voltar ao que era antes. Vai se sentir mal, desanimado, triste, mas vai continuar porque você gosta dela. Daí é só uma questão de tempo, e começam os papos "Quando nós vamos comprar nossas alianças?”... "Já estamos juntos a tanto tempo (oito meses), quando é que eu irei ter uma segurança com você?". Vocês irão ver móveis, assim como quem não quer nada.
Neste momento, você já está num...
NOIVADO - Só falta oficializar, já dançou. Comprometeu-se com Deus e o mundo, e se não casar, fica com fama de hipócrita, sem-vergonha, só queria se aproveitar da coitadinha (coitadinha???). Você é um babaca. Devia ter parado lá em cima, enquanto estava comendo sem problemas.
Daí, se você chegou até aqui e nunca achou nada de errado... Você está num...
CASAMENTO - É, meu amigo, cagaste. Estás Casado! Muito bom, vida a dois, estável, só se preocupando em ganhar dinheiro para dar uma boa vida para ela e as crianças. Muito bem, mas e quanto ao sexo??? Observe bem os seguintes dados:
Anos de casamento / Média de relações mensais
1 ano / 27 relações
2 anos / 24 relações
3 anos / 18 relações
4 anos / 12 relações
5 anos / 06 relações
6 anos / 05 relações
7 anos / 04 relações
8 anos / 02 relações
9 anos / 02 relações
Héé, velhinho, o sexo cai barbaramente. Aquele tal negócio, "Hoje não amor, estou com dor de cabeça". Nem parece aquela tarada com quem você namorava, lembra? Transavam no carro, na casa dos pais dela, no cinema, na praia, de pé, em qualquer lugar. Era um tesão que não acabava mais. Agora, com a vida já feita, prá que tudo isso? Qual foi a última vez que vocês foram a um Motel? Nem lembra, né ! Pois é, como eu já disse, devia ter parado antes!
Mas você não me escutou...dançou. Agora é levar com a barriga...
A SOLUÇÃO!!!
Esta corrente foi feita para homens casados como você; não é necessário dinheiro. Faça cinco cópias e envie para amigos de sua inteira confiança e, em seguida, empacote sua mulher e envie para o primeiro nome da lista. Acrescente seu nome em último lugar. Quando seu nome estiver em primeiro lugar você receberá nada mais nada menos que 16476 mulheres e algumas delas poderão ser interessantíssimas.
Atenção, não quebre esta corrente! Um sujeito quebrou a corrente e recebeu sua mulher de volta. Outro também ignorou a corrente e recebeu a mulher junto com a sogra. Mantenha a corrente e morra contente. Um amigo meu já recebeu 82 mulheres...
Hoje foi o enterro dele, tinha nos lábios um sorriso nunca visto em toda a sua vida.

domingo, março 18, 2007

Pequeno Tratado sobre a Mortalidade do Amor
(Alexandre Inagaki)
Todos os dias morre um amor. Quase nunca percebemos, mas todos os dias morre um amor. Às vezes de forma lenta e gradativa, quase indolor, após anos e anos de rotina. Às vezes melodramaticamente, como nas piores novelas mexicanas, com direito a bate-bocas vexaminosos, capazes de acordar o mais surdo dos vizinhos. Morre em uma cama de motel ou em frente à televisão de domingo. Morre sem beijo antes de dormir, sem mãos dadas, sem olhares compreensivos, com gosto de lágrima nos lábios. Morre depois de telefonemas cada vez mais espaçados, cartas cada vez mais concisas, beijos que esfriam aos poucos. Morre da mais completa e letal inanição.
Todos os dias morre um amor. Às vezes com uma explosão, quase sempre com um suspiro. Todos os dias morre um amor, embora nós, românticos mais na teoria do que na prática, relutemos em admitir. Porque nada é mais dolorido do que a constatação de um fracasso. De saber que, mais uma vez, um amor morreu. Porque, por mais que não queiramos aprender, a vida sempre nos ensina alguma coisa. E esta é a lição: amores morrem.
Todos os dias um amor é assassinado. Com a adaga do tédio, a cicuta da indiferença, a forca do escárnio, a metralhadora da traição. A sacola de presentes devolvidos, os ponteiros tiquetaqueando no relógio, o silêncio ensurdecedor depois de uma discussão: todo crime deixa evidências.
Todos nós fomos assassinos um dia. Há aqueles que, feito Lee Harvey Oswald, se refugiam em salas de cinema vazias. Ou preferem se esconder debaixo da cama, ao lado do bicho-papão. Outros confessam sua culpa em altos brados, fazendo de penico os ouvidos de infelizes garçons. Há aqueles que negam, veementemente, participação no crime, e buscam por novas vítimas em salas de chat ou pistas de danceteria, sem dor ou remorso. Os mais periculosos aproveitam sua experiência de criminosos para escrever livros de auto-ajuda com nomes paradoxais como O Amor Inteligente ou romances açucarados de banca de jornal, do tipo A Paixão Tem Olhos Azuis, difundindo ao mundo ilusões fatais aos corações sem cicatrizes.
Existem os amores que clamam por um tiro de misericórdia: corcéis feridos.
Existem os amores-zumbis, aqueles que se recusam a admitir que morreram. São capazes de perdurar anos, mortos-vivos sobre a Terra teimando em resistir à base de camas separadas, beijos burocráticos, sexo sem tesão. Estes não querem ser sacrificados, e, à semelhança dos zumbis hollywoodianos, também se alimentam de cérebros humanos, definhando paulatinamente até se tornarem laranjas chupadas.
Existem os amores-vegetais, aqueles que vivem em permanente estado de letargia, comuns principalmente entre os amantes platônicos que recordarão até o fim de seus dias o sorriso daquela ruivinha da 4ª série, ou entre fãs que ainda suspiram em frente a um pôster do Elvis Presley (e, pior, da fase havaiana). Mas titubeio em dizer que isso possa ser classificado como amor (bah, isso não é amor; amor vivido só do pescoço pra cima não é amor).
Existem, por fim, os amores-fênix. Aqueles que, apesar da luta diária pela sobrevivência, das contas a pagar, da paixão que escasseia com o decorrer dos anos, da TV ligada na mesa-redonda ao final do domingo, das calcinhas penduradas no chuveiro e das brigas que não levam a nada, ressuscitam das cinzas a cada fim de dia e perduram - teimosos, e belos, e cegos, e intensos. Mas estes são raríssimos, e há quem duvide de sua existência. Alguns os chamam de amores-unicórnio, porque são de uma beleza tão pura e rara que jamais poderiam ter existido, a não ser como lendas. Mas não quero acreditar nisso.
Um dia vou colocar um anúncio, bem espalhafatoso, no jornal.
PROCURA-SE: AMOR-FÊNIX
(oferece-se generosa recompensa)
Farewell
(Pablo Neruda)

Ya no se encantarán mis ojos en tus ojos,
ya no se endulzará junto a ti mi dolor.
Pero hacia donde vaya llevaré tu mirada
y hacia donde camines llevarás mi dolor.

Fui tuyo, fuiste mía ¿Qué más?
Juntos hicimos un recodo en la ruta donde el amor pasó.
Fui tuyo, fuiste mía.
Tú serás del que te ame, del que corte en tu huerto lo que he sembrado yo.

Yo me voy. Estoy triste; pero siempre estoy triste.
Vengo desde tus brazos. No sé hacia dónde voy.
Desde tu corazón me dice adiós un niño.
Y yo le digo adiós.

quinta-feira, outubro 26, 2006

Aniversário
(Álvaro de Campos)

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.

Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.
Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho... )

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!
O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos ...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...

Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!
Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos. . .
Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira! ...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

sexta-feira, agosto 04, 2006

Aprender
(William Shakespeare)

Depois de algum tempo você aprende a diferença, a sutil diferença,
entre dar a mão e acorrentar uma alma.

E você aprende que amar não significa apoiar-se,
e que companhia nem sempre significa segurança.

E começa a aceitar suas derrotas com a cabeça erguida e olhos adiante,
com a graça de um adulto e não com a tristeza de uma criança.

E aprende a construir todas as suas estradas no hoje,
porque o terreno do amanhã é incerto demais para os planos
e o futuro tem o costume de cair em meio ao vão.

Depois de um tempo você aprende que o sol queima
se você ficar exposto por muito tempo.

E aprende que não importa o quanto você se importe,
algumas pessoas simplesmente não se importam...

E aceita que não importa o quão boa seja uma pessoa,
ela vai feri-lo de vez em quando.

Aprende que falar pode aliviar dores emocionais.

Descobre que se leva um certo tempo para construir confiança
e apenas segundos para destruí-la.

E que você pode fazer coisas em um instante
das quais se arrependerá pelo resto da vida.

Aprende que verdadeiras amizades
continuam a crescer mesmo a longas distâncias.

E o que importa não é o que você tem na vida,
mas quem você tem na vida.

E que bons amigos são a família que nos permitiram escolher.
Aprende que não temos que mudar de amigos

se compreendermos que os amigos mudam.

Percebe que você e seu melhor amigo podem fazer qualquer coisa,
ou nada, e terem bons momentos juntos.

Descobre que as pessoas com quem você mais se importa na vida
são tomadas de você muito depressa...

Por isso, sempre devemos deixar as pessoas que amamos
com palavras amorosas,
pode ser a última vez que as vejamos...

Aprende que as circunstâncias e os ambientes têm influência sobre nós,
mas nós somos responsáveis por nós mesmos.

Começa a aprender que não se deve comparar com os outros,
mas com o melhor que pode ser, e que o tempo é curto.

Aprende que não importa onde já chegou, mas aonde está indo.
Mas se você não sabe para onde está indo, qualquer lugar serve.

Aprende que ou você controla seus atos ou eles o controlarão,
e que ser flexível não significa ser fraco ou não ter personalidade,
pois não importa o quão delicada e frágil seja uma situação,

sempre existem dois lados.

Aprende que os heróis são pessoas que fizeram o que era necessário fazer,
enfrentando as conseqüências.

Aprende que paciência requer muita prática.

Descobre que, algumas vezes,
a pessoa que você espera que o chute quando você cai
é uma das poucas que o ajudam a se levantar.

Aprende que maturidade tem mais a ver
com os tipos de experiência que se teve e o que você aprendeu com elas,
do que com quantos aniversários você celebrou.

Aprende que há mais de seus pais em você do que você supunha.

Aprende que nunca deve dizer a uma criança que seus sonhos são bobagens,
poucas coisas são tão humilhantes ...
...e seria uma tragédia se ela acreditasse nisso.

Aprende que quando está com raiva tem o direito de estar com raiva,
mas isso não te dá o direito de ser cruel.

Descobre que só porque alguém não o ama do jeito que você quer que ame,
não significa que esse alguém não o ama com tudo que pode,
pois existem pessoas que nos amam,
mas simplesmente não sabem como demonstrar ou viver isso.

Aprende que nem sempre é suficiente ser perdoado por alguém,
algumas vezes você tem aprender a perdoar a si mesmo.

Aprende que com a mesma severidade com que julga,
você em algum momento será julgado.

Aprende que não importa em quantos pedaços o seu coração foi partido,
o mundo não pára para que você o conserte.

Aprende que o tempo não é algo que possa voltar para trás.

Portanto, plante seu jardim e decore sua alma,
ao invés de esperar que alguém lhe traga flores.
E você aprende que realmente pode suportar...

Que realmente é forte, e que pode ir muito mais longe...
depois de pensar que não pode mais.

E que realmente a vida tem valor e que você tem valor diante da vida.

quinta-feira, julho 13, 2006

Meditação
(José Antônio Gama de Souza)


Falo de minha incoerência
Fujo de minha indigência
Falo de minha inconsistência
Fujo de minha razão...

Perante a inocência calo-me
Diante da existência luto
Perante a insistência exalto-me
Diante do mundo, escuto!

Falo de minha hipocrisia
Fujo de minha ironia
Falo de minha rebeldia
Fujo de minha solidão...

Perante a sintonia calo-me
Diante da melancolia paro
Perante a poesia aquieto-me
Diante da paz, espero!

Falo de minha arrogância
Fujo de minha ganância
Falo de minha ignorância
Fujo de minha atração...

Perante a substância, calo-me
Diante da importância, fico
Perante a tolerância quedo-me
Diante da infância, explico!

Falo de minha experiência
Fujo de minha impotência
Falo de minha consciência
Fujo de minha aflição...

Perante a ilusão calo-me
Diante da emoção cedo
Perante a paixão sinto-me
Diante do amor, excedo!
A um Otimista
(Augusto de Lima)


Pensas que são inteiramente nossos
nossos corpos de argila? Não no creias.
Para reter a vida, em vão anseias:
dela não guardarás sequer destroços.

Não tens, fingido herdeiro de colossos,
destinado a guardar coisas alheias,
nem o sangue que corre em tuas veias,
nem a sutil medula de teus ossos.

Uma voz noutra voz reproduzida,
reproduzindo antiga voz perdida,
o eco responde à voz — eco também...

Ris-te da sombra que refletes? Ri-se
também de ti a sombra: — quem te disse
que não és — olha atrás! — sombra de alguém?

segunda-feira, julho 10, 2006

Tabacaria
(Fernando Pessoa)

Não sou nada. Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens.
Com o destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,

E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

terça-feira, julho 04, 2006

O que mais dói
(Patativa do Assaré)


O que mais dói não é sofrer saudade
Do amor querido que se encontra ausente
Nem a lembrança que o coração sente
Dos belos sonhos da primeira idade.

Não é também a dura crueldade
Do falso amigo, quando engana a gente,
Nem os martírios de uma dor latente,
Quando a moléstia o nosso corpo invade.

O que mais dói e o peito nos oprime,
E nos revolta mais que o próprio crime,
Não é perder da posição um grau.

É ver os votos de um país inteiro,
Desde o praciano ao camponês roceiro,
Pra eleger um presidente mau.
Sobre Lealdade
(Mark Twain)

"Sabe, minha classe de lealdade era uma lealdade a meu país, não a suas instituições ou a seus governantes oficiais. O país é algo real, é o substancial, o eterno; é algo pelo que vigiar e preocupar-se e ao que ser leal. As instituições são estranhas, são meras roupas e as roupas podem ser mudadas, se tornar ásperas, deixar de ser confortáveis, deixar de proteger aos corpos do inverno, da enfermidade ou da morte. Ser leal aos trapos, disparar pelos trapos, venerar aos trapos, morrer pelos trapos, isso é lealdade ao irracional, é puramente animal. Isto pertence à monarquia, foi inventado pela monarquia. Deixa que a monarquia os conserve".

segunda-feira, julho 03, 2006

Envelhecendo
(Emílio de Menezes)

Tomba às vezes meu ser. De tropeço a tropeço,
Unidos, alma e corpo, ambos rolando vão.
É o abismo e eu não sei se cresço ou se decresço,
À proporção do mal, do bem à proporção.

Sobe às vezes meu ser. De arremesso a arremesso,
Unidos, estro e pulso, ambos fogem ao chão
E eu ora encaro a luz, ora à luz estremeço.
E não sei onde o mal e o bem me levarão.

Fim, qual deles será? Qual deles é começo?
Prêmio, qual deles é? Qual deles é expiação?
Por qual deles ventura ou castigo mereço?

Ante o perpétuo sim, e ante o perpétuo não,
Do bem que sempre fiz, nunca busquei o preço,

Do mal que nunca fiz, sofro a condenação.
Aos que sonham
(Raul de Leoni)

Não se pode sonhar impunemente
Um grande sonho pelo mundo afora,
Porque o veneno humano não demora
Em corrompê-lo na íntima semente...

Olhando no alto a árvore excelente,
Que os frutos de ouro esplêndidos enflora,
O Sonhador não vê, e até ignora
A cilada rasteira da Serpente.

Queres sonhar? Defende-te em segredo.
E lembra, a cada instante e a cada dia,
O que sempre acontece e aconteceu:

Prometeu e o abutre no rochedo,
O calvário do filho de Maria
E a cicuta que Sócrates bebeu!
Poema XV
(Pablo Neruda)

Me gustas cuando callas porque estás como ausente,
y me oyes desde lejos, y mi voz no te toca.
Parece que los ojos se te hubieran volado
y parece que un beso te cerrara la boca.

Como todas las cosas están llenas de mi alma
emerges de las cosas, llena del alma mía.
Mariposa de sueño, te pareces a mi alma,
y te pareces a la palabra melancolía.

Me gustas cuando callas y estás como distante.
Y estás como quejándote, mariposa en arrullo.
Y me oyes desde lejos, y mi voz no te alcanza:
déjame que me calle con el silencio tuyo.

Déjame que te hable también con tu silencio
claro como una lámpara, simple como un anillo.
Eres como la noche, callada y constelada.
Tu silencio es de estrella, tan lejano y sencillo.

Me gustas cuando callas porque estás como ausente.
Distante y dolorosa como si hubieras muerto.
Una palabra entonces, una sonrisa bastan.

Y estoy alegre, alegre de que no sea cierto.

quinta-feira, junho 29, 2006

Cantiga para não morrer
(Ferreira Gullar)
Quando você for se embora,
moça branca como a neve,
me leve.
Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.
Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.
E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.

quarta-feira, junho 28, 2006

Cantares
(Antonio Machado)

Todo pasa y todo queda
pero lo nuestro es pasar
pasar haciendo caminos
caminos sobre la mar

Nunca perseguí la gloria
ni dejar en la memoria
de los hombres mi canción;
yo amo los mundos sutiles
ingrávidos y gentiles
como pompas de jabón

Me gusta verlos pintarse
de sol y grana, volar
bajo el cielo azul, temblar
súbitamente y quebrarse

Nunca perseguí la gloria

Caminante, son tus huellas el camino y nada más
Caminante, no hay camino, se hace camino al andar

Al andar se hace camino
y al volver la vista atrás
se ve la senda que nunca
se ha de volver a pisar

Caminante no hay camino sino estelas en la mar

Hace algún tiempo en ese lugar
donde hoy los bosques se visten de espinos
se oyó la voz de un poeta gritar
"Caminante no hay camino, se hace camino al andar..."

Golpe a golpe, verso a verso

Murió el poeta lejos del hogar
Le cubre el polvo de un país vecino
Al alejarse le vieron llorar
"Caminante no hay camino, se hace camino al andar..."

Golpe a golpe, verso a verso

Cuando el jilguero no puede cantar
cuando el poeta es un peregrino
cuando de nada nos sirve rezar
"Caminante no hay camino, se hace camino al andar..."
A Hora Íntima
(Vinícius de Morais)

Quem pagará o enterro e as flores
Se eu me morrer de amores?

Quem, dentre amigos, tão amigo
Para estar no caixão comigo?
Quem, em meio ao funeral
Dirá de mim: – Nunca fez mal...

Quem, bêbedo, chorará em voz alta
De não me ter trazido nada?
Quem virá despetalar pétalas
No meu túmulo de poeta?

Quem jogará timidamente
Na terra um grão de semente?
Quem elevará o olhar covarde
Até a estrela da tarde?

Quem me dirá palavras mágicas
Capazes de empalidecer o mármore?
Quem, oculta em véus escuros
Se crucificará nos muros?

Quem, macerada de desgosto
Sorrirá: – Rei morto, rei posto...
Quantas, debruçadas sobre o báratro
Sentirão as dores do parto?

Qual a que, branca de receio
Tocará o botão do seio?
Quem, louca, se jogará de bruços
A soluçar tantos soluços
Que há de despertar receios?

Quantos, os maxilares contraídos
O sangue a pulsar nas cicatrizes
Dirão: – Foi um doido amigo...

Quem, criança, olhando a terra
Ao ver movimentar-se um verme
Observará um ar de critério?
Quem, em circunstância oficial
Há de propor meu pedestal?

Quais os que, vindos da montanha
Terão circunspecção tamanha
Que eu hei de rir branco de cal?

Qual a que, o rosto sulcado de vento
Lançará um punhado de sal
Na minha cova de cimento?

Quem cantará canções de amigo
No dia do meu funeral?
Qual a que não estará presente
Por motivo circunstancial?

Quem cravará no seio duro
Uma lâmina enferrujada?
Quem, em seu verbo inconsútil
Há de orar: – Deus o tenha em sua guarda.

Qual o amigo que a sós consigo
Pensará: – Não há de ser nada...

Quem será a estranha figura
A um tronco de árvore encostada
Com um olhar frio e um ar de dúvida?

Quem se abraçará comigo
Que terá de ser arrancada?
Quem vai pagar o enterro e as flores
Se eu me morrer de amores?